crítica

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Marcelo Oliveira

À luz do olhar

Marcelo Oliveira; [2006] Betim, MG, Congado.



“A grande dor do homem, que começa na infância
e prossegue até a morte, é que olhar e comer
são duas operações diferentes."
Simone Weil
 

Quando criança costumava freqüentar a missa aos domingos. Pelas mãos de pai e mãe, penetrava no espaço do templo, que ecoava um silêncio muito maior do que eu. Mas também me habitava este silêncio, também era meu. Talvez por isso dessas manhãs de domingo sua substância etérea me seja ainda hoje mais vívida do que qualquer aspecto do rito. Deste, guardo apenas uma frase: “Ele está no meio de nós”. A frase era senha de despedida, e logo toda a gente se retirava. Enquanto a atmosfera se desfazia, restava a frase, sentida sem sentido, o som desencarnado ainda.

Da frase, que guardo até hoje, me recordei ao deitar os olhos na beleza toda de livro que é o Estórias de Luz, de Marcelo Oliveira. O nome é justo e honesto e cumpre o que promete. Pois o fotógrafo grava em luz o que os olhos vêem e o coração sente: paisagens, coisas e gentes surgem como presenças emprenhadas de substância. Marcelo ilumina e revela estórias em que tudo se narra por um olhar que traduz contato em encontro, pois é olhar permeado pelo afeto e decantado pelo tempo: tempo subjetivo de vivência e convivência do fotógrafo e do ser humano com as paisagens, as coisas e as gentes do Vale do Jequitinhonha, nas Minas Gerais.

Este olhar que ilumina é em tudo oposto ao olhar ligeiro que não considera, não guarda, não apreende, não se põe entre. Daí a beleza própria às imagens que não foram simplesmente recolhidas, mas amorosa e pacientemente colhidas e acolhidas. Estas imagens nascem de um estar entre que só a fotografia pode proporcionar, pois o olho do fotógrafo é corpo desencarnado que, para ser preciso, precisa encarnar no que vê.

Para esse olho que simultaneamente olha de fora e vê de dentro “a vida não é só isso que se vê / é um pouco mais”... Incorporar este a mais à imagem é desafio ético e estético. O vão que separa o olho do mundo não pode, não deve, ser transposto: sua profundidade exige respeito e suas profundezas, consideração. Mas na abertura produtiva à este vazio o olho que fotografa deve conscientemente se instalar. Habitando este “não lugar”, tudo aquilo que separa torna-se possibilidade de caminho. O olhar do contador dessas Estórias de Luz sabe, conhece o caminho. E o caminho, assim como o vazio, está no meio de nós. 





Raul Motta
Outubro de 2009 / agosto de 2011


Lutheria, Montes Claros [MG]



Marcelo Oliveira é fotógrafo documentarista pela Universidade Federal Fluminense - UFF, com especialização em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj. Carioca radicado em Belo Horizonte, desde o ano de 2000 percorre o Jequitinhonha e suas margens, recolhendo e acolhendo imagens, desde a nascente no Serro [MG] até a foz em Belmonte [BA].
 

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Marcelo Oliveira
blog


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[ * ] Este texto nasceu “Estórias de Luz”, transbordado espontaneamente do encanto sentido pelas fotografias que o amigo Marcelo Oliveira reuniu e publicou no seu livro Estórias de Luz - Narrativa Fotográfica do Vale do Jequitinhonha, em 2009. 

Mas eram tantas as estórias por contar que, agora, no final de 2012, Oliveira pôs no mundo outra cria, Estórias de Luz II. O texto oferecido ao amigo, que o guardou bem guardado, rebatizado, foi incorporado ao livro recém publicado. O que me muito me honra, pois não é todo dia que a gente se faz eterno em tão boa companhia...

Salve, Marcelo!




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Julio Castro

Show project notes
O que resulta
Julio Castro; Sem título; monotipia sobre tecido, 2001


Técnica a serviço da reprodução e difusão de imagens, gênero artístico autônomo, procedimento aberto a experimentações: examinado retrospectivamente, o percurso histórico da gravura revela uma longa e fecunda tradição, capaz de absorver e assimilar inúmeras revisões e re-significações. Modo de gravar sui generis, a monotipia – como indica o termo – proporciona uma dessas revisões ao redimensionar a própria identidade da gravura, associada a uma lógica quantitativa de reprodutibilidade que historicamente distinguiu o gênero.
Após exercitar intensamente a xilogravura e a gravura em metal, paralelamente à pintura, Julio Castro descobriu na monotipia o veículo adequado à pulsão experimental que caracteriza sua prática artística, seus trabalhos atuais originando-se de pesquisas sistemáticas acerca das inúmeras possibilidades de transmissibilidade da imagem, de sua constituição por meio de contatos, passagens, mudanças de estado, intercessões, interferências, contaminações... É justamente por essa permanente investigação das mediações entre a matriz e o suporte que o artista instaura uma lógica processual que atualiza o tradicional métier, gerando uma obra permanentemente em busca de novas estratégias para se efetivar no mundo – seja apropriando-se de suportes que não o papel, seja assumindo um perfil instalativo presente em alguns projetos expositivos.
Assumindo a condição contemporânea pelo experimentalismo que agrega à sua prática enquanto permanece radicalmente comprometido com o meio gravura, Julio Castro se capacita a estender os limites do gênero. Guardando como valor intrínseco ao trabalho artístico a experiência da disciplina metódica longamente vivenciada no recolhimento do atelier, garante que a premência de invenção jamais se converta em um primado do processo, e este não se sobreponha às obras - o que resulta em trabalhos que vêm ao mundo não como meros desdobramentos de seus processos geradores, mas sim como corpos que se propõem a tocar sensivelmente outros corpos. Essa é a intenção que subjaz ao processo, essa a razão que se des-dobra em forma.
Raul Motta 
Rio, julho de 2005

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Texto originalmente escrito para a exposição do artista no evento Arte de Portas Abertas, Santa Teresa, Rio de Janeiro, 2005.
Monotipias de Julio Castro no site do Estúdio Dezenove
Uma versão em francês do texto aqui publicado está disponível no site da La Ruelle - Galerie d'art contemporaine



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Estela Sokol

O Ponto


Estela Sokol; Sem título; xilogravura, 2003; 76,0 x 48,0 cm


O gesto gravado é antevisão, cálculo de equilíbrio. O processo supõem um desdobrar-se no tempo, impõem antecipações. Kairós e Cronos, o saber-agir do instante e a duração densa. Reiterações, persistências, resultados (que a mera habilidade e o treino da mão podem por tudo a perder).

Resultados: o equilíbrio é no instante, concerto de forças postas em ato pela tensão plástica. O gesto incisivo aponta para o momento perceptivo – passível de ser assinalado, dificilmente retido. E o olhar se faz análogo – também ele deslocável, interditado a todo e qualquer conforto.

Por subtração, o gesto de Estela Sokol instaura o branco. Opaco, tornado pura espacialidade – e que raramente emerge do plano dramatizado em luz. (Não é dessa ordem a afinidade da artista com o pathos de um Goeldi. Do vago desaprumo dos personagens solitários, dos casarões enviesados obedientes a uma outra gravidade é do que ela se apropria, se solidariza).

Aqui, branco-espaço e massa em negro ativam um outro drama, despersonalizado e sólido (a “trágica noite” se desespiritualiza). Fora de toda a metafísica, essas xilogravuras manifestam é plena correspondência entre corpo que grava e corpo da obra. Transmissão de fisicalidades: uma bem sucedida operação que subtrai Estela do mero artesanato, esse atavismo a que todo gravador contemporâneo cumpre atualizar.

Então...

(e a necessidade do gesto amplificar-se em coisa-volume, impelida a se instalar no espaço habitável do mundo)?

Fica o desconforto, a gravidade, um ponto sem apoio.

Raul Motta

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Texto originalmente produzido para o Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo. 
Estela Sokol e O Ponto no site da Galeria Virgílio




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Renato Fialho: a pintura vive

Sobre o homem e o artista Renato Fialho pode-se dizer como nos versos de Drummond: "Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo". O temperamento apaixonado e uma postura artística eminentemente autônoma, livre de todo e qualquer comprometimento programático ou estilístico mais estrito – e estreito – são qualidades que fundamentam e sintetizam a longa e coerente trajetória de um pintor que, a par de autodidata, nunca esteve alheio às questões que historicamente determinaram os rumos da pintura moderna.
Em seu conjunto, a obra pictórica de Renato Fialho expressa uma profissão de fé nas qualidades imanentes da pintura, qualidades estas postas em discussão desde que a negatividade crítica do ready-made de Marcel Duchamp inaugurou o debate em torno do "fim do quadro". Renato Fialho não ignora este debate, mas responde a ele reafirmando sua crença pessoal na pintura como realidade sensório-afetiva e fazendo de sua praxis de pintor um intenso, sincero e generoso ato de fervor cromático. O cromatismo intenso, resultante da postura eminentemente empática que o artista estabelece com o mundo está, por sua vez, a serviço de uma espécie de lirismo denso: o manejo dos vermelhos e amarelos, dos verdes e azuis, trabalhados muitas vezes em camadas espessas e pacientemente superpostas consubstancia uma poética de exaltação à dimensão matérica do pigmento.
Favela de Parada de Lucas, 1980
Algumas das melhores telas de Renato Fialho, paralelamente a essa exaltação cromática, parecem dialogar com um tipo de maravilhamento originário que o artista se esforça em reter, reconstruir e comunicar – isto é, devolver ao mundo – em forma de pintura. É assim, por exemplo, com a solitária quietude que se pode perceber nos objetos magistralmente compostos da Natureza Morta – Garrafas. Outras vezes – e agora me remeto a algumas paisagens, como Favela – Parada de Lucas – a distância relativamente ao motivo preserva o dado contemplativo, no qual à distância no espaço corresponde uma distância no tempo - pois a memória, por natureza produtora e propiciadora de imagens, é o tra das vertentes constitutivas da obra de Renato Fialho, como bem o demonstram um sem número de telas que tematizam jogos infantis. Mas a memória que impregna as telas de Fialho é antes de matriz bergsoniana que proustiana, comemorativa e não rememorativa: e não é a lembrança de uma infância idílica que transparece e sim a criança presente e viva no artista que se expressa através das massas de cor.
Meninos de Rua, 1990
E é um forte veio humanista que faz com que a figura humana permeie – e até mesmo conduza – grande parte da obra de Renato Fialho. Inicialmente apresentando-se mais definida, diferenciando-se e destacando-se enfaticamente do fundo – como na tela Bebedores de Cerveja , de 1970 - , torna-se mais integrada a este – e o Nu de 1971 é primoroso ao fundir figura e fundo valendo-se da delicadeza das inúmeras "passagens" de tons de vermelho - , até a apoteose da dissolução quase total, como em Meninos de Rua, já na década de 90: inicialmente presença pictórica, a figura humana aqui já é pura realidade pictórica. Importa destacar o caráter gradual do processo, indicando antes de mais nada uma necessidade interior do artista e orgânica à obra, ainda que em diálogo com as conquistas e transformações promovidas pelas diversas linguagens modernas.
Sol e Lua: uma lenda indígena, 2000
Mas o artista verdadeiro está sempre em movimento, e telas recentes apontam para novos caminhos e possibilidades ao configurarem relações espaço-temporais completamente distintas de obras anteriores. O espaço mítico, ilimitado e atemporal de Sol e Lua – Uma Lenda Indígena e um certo retorno à linha e ao desenho têm o poder de instaurar uma outra realidade, que não é nem o retorno à cotidianeidade dos Bebedores de Cerveja nem tampouco puramente pictórica como em Meninos de Rua; de modo semelhante, Jesuíno Brilhante é antes um emblema do que um tipo – o cangaceiro – tantas vezes presente em telas anteriores do artista.
Assim, assistimos tanto a um alargamento temático como também a um retorno, renovado, do pintor a um motivo já anteriormente explorado. E esta última característica nos remete a uma afirmação de Paul Valéry, segundo a qual o artista não é alguém que tem algo a dizer e sim aquele que sabe como dizer... Renato Fialho sabe como dizer, e por isso sua pintura vive: vibra, pulsa, encanta o olho e o olhar.
Raul Motta

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Renato Fialho é artista plástico e letrista de música popular. 
O texto aqui republicado foi originalmente escrito para o site do artista em 2002.



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Lídia Costa

Poética do Orgânico






“A Arte que atravessa em mim, por mais que me ‘custe’, é o meu desejo de viver.”
Lídia Costa

As linhas convidam o olhar do espectador a uma dança repleta de sinuosidade. As formas orgânicas, soltas, flutuantes no espaço, compõem figuras plenas de substância, em diálogo ativo com o vazio que as atravessa. As cores, exuberantes, encantam e são portadoras de uma crença genuína na beleza, apesar de tudo o que, atualmente, contra ela conspira.


Mais que um estilo, ao longo de sua trajetória Lídia Costa vem construindo uma poética extremamente pessoal por meio de uma obra intuitiva e sensorial, de espírito lúdico, na qual a linha e a cor se sobressaem. Desenho, pintura, colagem, assemblage, móbiles, máscaras ou totens, gêneros e suportes variados convivem e se complementam, e o pensamento plástico que se expressa neste conjunto de trabalhos indica uma artista sensível, simultaneamente aberta às experimentações e coerente com sua particular visão de mundo. O grande artista moderno que foi Paul Klee já sentenciou que “a arte não mostra o visível, torna visível” e o olhar da artista traduz esta máxima, pois vive radicalmente a experiência de se estar neste mundo, mas o penetra e absorve para se colocar a serviço de uma obra sempre em busca da revelação de uma verdade interior por meio da permanente recriação do mundo exterior. Por isso Lídia Costa não se prende a uma reprodução realista, fotográfica, das coisas do mundo e de suas aparências mas, ao contrário, suas obras revelam uma verdade subjetiva e sua técnica está a serviço de uma sensibilidade estética e de um temperamento que jamais se contentam com a superfície das coisas e da vida.


A dança, a música e a natureza, em formas mais ou menos estilizadas, são motivos recorrentes nos desenhos e pinturas da artista, assim como as figuras humanas, principalmente as femininas. A esse respeito é interessante perceber como Lídia Costa trata todas as coisas do mundo como corpos, seres vivos e pulsantes, compondo uma espécie de teatro anímico no qual o ser humano, ainda que ator principal, honrasse e se reconhecesse nas forças da natureza que o cercam.  Arquetípicas, essas figuras simbolizam experiências que transcendem ao tempo, a esse nosso tempo acelerado e conflituoso que muitas vezes nos impede de fruir as mais verdadeiras e enriquecedoras experiências humanas. Daí a beleza e a necessidade presentes na arte de Lídia Costa, pois seu olhar é o olhar por excelência que se demora sobre as coisas para delas extrair imagens sempre renovadas, e assim também nos propiciar outras possibilidades do ver – e do viver.


Raul Motta
Outubro, 2012

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Texto de apresentação da obra da artista, originalmente publicado no catálogo Poética do Orgânico.
 




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