terça-feira, 17 de março de 2009

haiga

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haicai e foto: R.M.
concepção visual da amiga Clarice Villac

uns e outros haicais


Se a memória não falha, comecei a escrever uns quase haicais no início da década de 1980. Já me atraía o cinema [Ozu, Mizoguchi, Kurosawa] e as artes orientais [caligrafia, ukyo-e], mas nada sabia da literatura clássica japonesa até ler, quase simultaneamente [sincronicamente?] três livros fundamentais: a biografia de Matsuo Bashô por Paulo Leminski [Bashô – A Lágrima do Peixe; Editora Brasiliense; col. Encanto Radical, 1983] e duas traduções da poeta Olga Savary: o Livro dos Hai Kais, seleção de poemas de três dos maiores representantes da arte do haicai clássico japonês, Bashô, Buson e Issa [Aliança Cultural Brasil-Japão/Massao Ohno Editores; São Paulo, 1987] e Sendas de Ôku, um dos cinco diários de viagem de Bashô [Roswitha Kempf Editores; 1986].

Nestes inícios, não tinha a preocupação de respeitar a tradição da divisão do poema em versos de 5, 7 e 5 sílabas, mas procurava escrever a partir de experiências vivenciadas, o que contemplava duas outras regras clássicas: referir-se a um evento particular e apresentar tal evento como “acontecendo agora”, e não no passado. Mais recentemente me propus a escrever respeitando a metrificação clássica e, acredito, este exercício tem resultado em poemas que julgo mais consistentes. Estes últimos estão aqui publicados a seguir, intitulados uns; os mais antigos são os outros.

Para os leitores que tiverem curiosidade em saber mais sobre os haicais, indico duas fontes na internet:

Caqui – Revista Brasileira de Haicai
http://www.kakinet.com/



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Julius Bissier; aquarela; "2. Okt. 58"

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uns



A vida sopra,
suave, um segredo:
brisa que passa.


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Terra redonda
ainda que parados
eterna ronda.


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Logo ali, o mar.
Vai seguindo o rio:
fluiracabar.

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A alma - lama

nas águas de janeiro

me lavo - leve.



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Da chuva que cai
quero apenas
uma única gota.


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Meu coração
encontra o amor:
incêndio azul.


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desenho: Mônica Sartori; "Sinuosidades" [ * ]



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outros

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Cadeiras de plástico:

na de madeira, solitária,

o gato.


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Rugas que contam histórias -

quanta beleza no teu rosto,

mulher!

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Quarto vazio:

minha companhia

lhe agrada?

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É apenas uma mulher

mas já não vejo

floresárvores.


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Vestida de azul

ela cruza as pernas e abre um livro.

[A beleza é uma coisa simples]


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Nem o sol do meio-dia

desfaz a névoa

do meu coração!


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Branca borboleta

me aponta o vermelho

em meio o verde.


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Presente dado

a quem está ausente:

dela me lembro.


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Uma árvore... e ninguém por perto!

Por quê não?

Infância perdida...

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À beira do riacho

penso mergulhar em sua corrente

minha memória pesada.


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Triste a cabeça

repleta de pensamentos:

peneira fina.

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A luz

se acende

depois do happy end.


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No topo da montanha,

a surpresa:

ainda falta para o céu!



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O buda

sob a lâmpada:

duplamente iluminado.


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noitevaranda

enquanto estrelas

mimetizam pirilampos.



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Teu silêncio -

morno - e o mar

em torno.


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[R.M.]

[ * ] Mônica Sartori é representada pela Galeria Anna Maria Niemeyer

http://www.annamarianiemeyer.com.br/



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"one word, one buddha"


"One word, one Buddha"; Shakyô [*] of the Lotus Sutra.


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The five virtues of shakyô are:

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"Venerating the letters with your eyes

Keeping the letters in your heart

Chanting the letters with your mouth

Writing the letters with your hands

Becoming one with Buddha"


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[ * ] Shakyô:

prática devocional que consistia em copiar os Sûtras [textos canônicos do budismo].


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Imagem e texto extraídos de:

STEVENS, John. Sacred Calligraph of the East. Shambhala: London, 1981


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poemas distantes


Elegia



I


A distância,
amiga, não é doce
como o vinho...

Sorvo agora,
em um rubro cálice,
saudades tuas

e em teu corpo
penso. E o perfume,
inebriante

alma das horas,
alento dos convivas,
a mim me toca

como ausência
dolorosa e triste,
de luz vazia...

Amada, teu bem
ainda não é o meu.
O coração da vida

não se alcança
apenas em palavras...
Inda que belas,

são como o gelo:
formas limpas, perfeitas,
a querer d’água

a fluidez, o
fluxo – e o destino:
se perder no mar...

Assim, desejo
a sublime ventura:
ao amar, ir – e

no Amor, chegar;
em teus braços saber
o que é nadar...




II


Mas, ainda aqui,
nada sei do teu corpo
senão miragens ...

E, só, caminho
por vales, planícies
desertas e vãs,

enquanto sobram
as horas e os dias
desalentam-se,

entorpecendo –
me como o vinho, já por
demais sorvido

em tosco rito -
pálido arremedo
a Dioniso.

A taça, leve,
e a garrafa, oca,
são oferendas

mínimas – e o
deus exige além:
enovelar-se,

extenuado,
preenchendo o vazio
entre corpos nus,

abeberar-se
da seiva acridoce
dos sexos, quente

como o sangue nos
corações... E, só então,
consagrar os dois

amantes, dourar
seus corpos e untar
suas almas sãs.



III



Amiga: tua
distância, agora,
é aura onde

faço cálida
morada. Entre tantas
és a única

por que anseio:
por teu nome eu peço,
por teu hálito,

aqueço; sendo
um, enlouqueço; dois,
me reconheço...

Ah! Se pudesse,
agora, sentir de ti
o sumo prazer,

o inefável
toque que imagino,
apenas! Tremo,

e o frêmito
que me corre inteiro
é sombra frente

ao real sentir,
ao túrgido turbilhão!
Mas, espero - e

a alma é mar,
sopra o vento, vago...
E trago em mim,

por sob a pele,
o brilho das estrelas
frias, distantes...

- Enquanto guardo
o mergulho profundo
que ensaio, só.







Chama



as
asas
voam
e
são
tantas
as flechas
as flamas
os nomes
do
amor
que
a cada vôo
se me jogo inteiro
e me perco em tudo que me cerca
sinto que o mais em mim não me sustenta
(que sou muito mais que meu coração agüenta)
e volto ao solo, ao chão, ao colo de um deus desequilibrado e trôpego...







soma

z o n a e s cu r a

d a c o n s c i ê n c i a

z o n a l u z

z o n a p ó s

d e t u d o u m p o u c o

e u m i x a d o a o t o d o

r e v e r e n c i o

o c o r p o

a t r a m a

a s o m a

o c o i t o














Extático balé

Qual serpente
dulcíssima e negra
[que à luz do dia se recolhe em corpo]
do teu ventre
parte o movimento
linha súbita
espiralada e crescente
pura grafia
alfabeto constelar transcrito em gestos a desvelar aparências:
a matéria se quer última semente
ponte sutil
entre tantos mundos existentes.



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[R.M.]

concreto

.
se
somos
SÓIS
sabemos
sendo
SÓS
.
[R.M.]

terça-feira, 3 de março de 2009

tempo[s]

o tempo
urge
e trama

o tempo
traça
e troça

o tempo
clama
e cama

o tempo
é templo
e chama




[ o tempo

em nada pousa

o tempo

pesa

ou

repousa ]


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[R.M.]