sábado, 10 de outubro de 2009

um sonho





havia
sol
e luzia
azul flores cheiro
teu abraço
eu você
nada falava
tudo em luz

se dizia




[ R.M. ]



foto R.M. ; série "a vila"; Londrina, 2007

sábado, 3 de outubro de 2009

todo ouvidos para o teu olhar



me ensina
você
a vida
off sina






[ R.M.N.O. ]
poema + imagens

terça-feira, 22 de setembro de 2009

maré

Vincent Van Gogh



às vezes me fico assim
barquinho na areia esperando
amormar
me lamber
me levar





[R.M.]

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

semente II [ * ]


me planto a teus pés
e espero
o tempo que flor








[R.M.]

[ * ] em diálogo livre, como só poderia, com o poema
“seja lá o que flor”, da Mariana
http://www.buhobranca.blogspot.com/

terça-feira, 25 de agosto de 2009

inteiro [ * ]




um corte
no cerne da carne do tempo -

o sentido
escorre como seiva -

pode a dor ser
f[r]esta para os olhos?







Haia O.; pintura; s/t.; 2008

.

[ * ] R.M. para pintura de Haia O.

domingo, 23 de agosto de 2009

tanto

Haia O.; pintura; s/t; 2008




ferida a alma
do ancestral desejo
à carne segue

abissais
cânticos, orações
desconhecidos bálsamos

a súplica é ser
do amor o mar
submerso em si


.

[R.M.]

domingo, 19 de julho de 2009

Solidão e falsa solidão

Alguns textos nos chegam às mãos quando menos esperamos – e estes costumam ser os melhores. Pois foi num desses momentos que me caiu no colo do olho esta crônica de 7 de junho de 1969, na qual Clarice Lispector faz uma longa citação de Thomas Merton:

.

“Eu, que pouco li Thomas Merton, copiei no entanto de algum artigo seu as seguintes palavras: ‘Quando a sociedade humana cumpre o dever na sua verdadeira função, as pessoas que a formam intensificam cada vez mais a própria liberdade individual e a integridade pessoal. E quanto mais cada indivíduo desenvolve e descobre as fontes secretas de sua própria personalidade incomunicável, mais ele pode contribuir para a vida do todo. A solidão é necessária para a sociedade como o silêncio para a linguagem, e o ar para os pulmões e a comida para o corpo. A comunidade, que procura invadir ou destruir a solidão espiritual dos indivíduos que a compõem, está condenando a si mesma à morte por asfixia espiritual.’
“E mais adiante: ‘A solidão é tão necessária, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo que quando a sociedade falha em prover a solidão suficiente para desenvolver a vida interior das pessoas que a compõe, elas se rebelam e procuram a falsa solidão. A falsa solidão é quando um indivíduo, ao qual foi negado o direito de se tornar uma pessoa, vinga-se da sociedade transformando sua individualidade numa arma destruidora. A verdadeira solidão é encontrada na humildade, que é infinitamente rica. A falsa solidão é o refúgio do orgulho, e infinitamente pobre. A pobreza da falsa solidão vem de uma ilusão que pretende, ao enfeitar-se com coisas que nunca podem ser possuídas, distinguir o eu do indivíduo da massa de outros homens. A verdadeira solidão é sem um eu.’
‘Por isso é rica em silêncio e em caridade e em paz. Encontra em si infindáveis fontes de bem para os outros. A falsa solidão é egocêntrica. E porque nada encontra em seu centro, procura arrastar todas as coisas para ela. Mas cada coisa que ela toca infecciona-se com o seu próprio nada, e se destrói. A verdadeira solidão limpa a alma, abre-se completamente para os quatro ventos da generosidade. A falsa solidão fecha a porta para todos os homens.’
‘Ambas as solidões procuram distinguir o indivíduo da multidão. A verdadeira consegue, a falsa falha. A verdadeira solidão separa um homem de outros para que ele possa desenvolver o bem que está nele, e então cumprir seu verdadeiro destino a pôr-se a serviço de uma pessoa.’”

.

Texto extraído de: LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo; Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992; p.213. O título da postagem é o mesmo da crônica.

Thomas Merton [1915-1968] Monge trapista da Abadia de Gethsemani [Kentucky, USA]; escritor, poeta, ativista social e estudioso de religiões comparadas.

+ Thomas Merton http://www.reflexoes-merton.blogspot.com/

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Paulo Sérgio dos Santos Machado

Paulo Sérgio; "Estrelas e Corações"; hidrocor s/ papel; s/d

“Meu nome é Paulo Sérgio dos Santos Machado. Nasci em 27 de agosto de 1954, no Rio de Janeiro, Brasil. Moro no Méier. Gosto de samba, pagode, forró, bossa nova, praia, esporte, amor, gosto de paz, carinho, da responsabilidade, do capricho, da dignidade, gosto do respeito, gosto de viajar, da honestidade, gosto das coisas boas, da sinceridade, gosto das boas pessoas, sou católico, gosto de pensar positivo, de imaginar positivo, gosto da vida, gosto deste mundo lindo e encantador, sou uma pessoa amiga, gosto da gentileza e também gosto da bondade, gosto da felicidade e das boas relações.
Satisfação,
Tudo de bom.”

.

Não sei porque, mas hoje me lembrei do Paulo Sérgio.
Paulo Sérgio dos Santos Machado é um artista desconhecido, o que nem sempre quer dizer desimportante – pois os poucos que o conheceram, conhecem e conhecerão com certeza souberam, sabem e saberão reconhecê-lo em sua verdadeira dimensão e escala: humana, demasiadamente humana.
“Nada do que é humano me é estranho” é outra sentença nietzscheana. E Paulo Sérgio é um dos que podem dizer que viveram um pouco mais intensamente o que se oculta nesta frase. Nos seus desenhos e pinturas, Paulo Sérgio é todo luz; na vida, vive o paradoxo de saber que “toda luz projeta sua sombra.”
Do texto que escrevi para sua exposição Constelações do Universo de um Ser Humano [nome e sobrenome resultantes de um acordo entre nós, pois eu havia sugerido apenas “Constelações” e ele fez questão de acrescentar o sobrenome...], em 2003, na Galeria do Centro Cultural da Uerj, rememoro alguns trechos:

“Nos trabalhos aqui expostos, elementos recorrentes articulam uma vontade de ordem, equilíbrio e beleza [...] que se apóia quase sempre na simetria para compor uma imagem simultaneamente estabilizadora e energética do mundo e da vida. [...] as linhas se organizam como que para capturar e transcrever a imanência de forças invisíveis [e] plasmam essas forças de uma inequívoca materialidade.”
“[...] Paulo Sérgio constrói uma obra pessoal moldada pelos ideais clássicos que sempre associaram a contenção e o equilíbrio à harmonia, e esta, à beleza; mas uma obra igualmente marcada pelo dinamismo barroco de uma geometria suntuosa, quase fantástica. Assim, por essas artimanhas inerentes ao fazer artístico, sempre a nos lembrar que a verdade da arte é diferente da verdade da vida, Paulo Sérgio, que tanto preza as certezas da simetria, por meio da tensão resultante dessa articulação de opostos presentes em suas obras, nos confronta com a incerteza e a indeterminabilidade.[...]”
.
Há tempos não vejo Paulo Sérgio. Nem ao menos sei se ele continua entre nós. Mas agora sei completamente porque me lembro dele hoje: para falar um pouco de luz e de mergulhos, de belezas medidas e desmedidas.
Fica aqui a homenagem ao artista que conheci como estagiário nas Oficinas Terapêuticas do Hospital-Dia Ricardo Montalbam, do Hospital Universitário Pedro Ernesto, quando cursava minha graduação. Além das lembranças da convivência por mais de dois anos, guardo até hoje o desenho reproduzido no início da postagem, o mesmo escolhido por ele para ilustrar a capa do folder e que gentilmente me foi ofertado como agradecimento pelo trabalho que realizamos, conjuntamente, de curadoria e montagem de sua exposição.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

trago



o
mel
das entranhas
o
osso
do tempo
o
mar
dos lamentos
o
creme
do crime
o
dia
de sol
o
chão
do abismo
o
sonho
no colo
o
alvo
ao léu
a
alma
ao relento
o
céu
pela boca
o
leito
no peito
o
cerne
da coisa
a
carne
da língua
a
obra
em progresso
o

pela mão



.

[ R.M. ]

quarta-feira, 8 de julho de 2009

precisão


preciso
perder
a
razão
para ser
mais preciso

ou:

para ser
mais
preciso perder

ou:

preciso
perder a razão
para ser

ou:

preciso
perder
a
razão
para
ser mais

eu:

preciso





[R.M.]

dupla lavra




guardo a palavra
e
cuido de mim


.



[R.M.]


meta fora

entro de cabeça
no corpo
da
palavra

mas

não faço amor
faço a guerra


R.M. [ * ] a partir de Roman Jakobson:
"A literatura é a violência organizada contra a fala comum."



in corpore

o corpo da palavra
não é
o meu

o corpo da palavra
é um
duplo de mim

o corpo da palavra
não me é
estranho

e

se
de repente
me entranho

rápido e rasteiro
saio
inteiro

o corpo da palavra
não é
meu




[ R.M. ]


tamanho

tantas
e nenhuma
face –

o sol
ainda abaixo
do horizonte –

um grito
em vontade
é ainda maior –




[ R.M. ]



terça-feira, 7 de julho de 2009

vocatio


a

força da palavra

é:

toda claridade
clareza
nem
uma




[R.M.]

pureza

um grito
em vontade
é ainda maior




[ R.M. ]

imagens: série sombras; fotografia digital, 2009.

.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

de aniversário

foto da série "orquídeas"; R.M., 2007

.

Penso em você com ternura
Penso em você com afeto
Às vezes bem que te esqueço – é fato...
Ninguém é assim tão perfeito – ou chato!

Porém se de ti me esqueço
É só pra lembrar em seguida
Pois tua lembrança, reconheço,
Me faz bem à vida...

Da vida se vem, e nela se vai
A tudo contém, em tudo se esvai
Mas se entre chegada e partida
Da vida almejamos boa guarida

Guardemos não só na lembrança,
Amiga: se cada um é de si e se tem
Vida com vida se trança...
E cuidar de ti me faz bem!



.

R.M.
para Norma O.
jun/jul, 2009

domingo, 28 de junho de 2009

Varvara Stepanova



O CCBB - Centro Cultural do Banco do Brasil aqui do Rio inaugurou recentemente a exposição Virada Russa, apresentando 123 obras que recriam o clima artístico da Rússia pré-revolucionária, os primeiros anos da utopia soviética e o “retorno à ordem” stalinista.
Aproveito a oportunidade para publicar aqui um poema que escrevi em 2007 para Varvara Stepanova [1894-1958], artista plástica, cenógrafa, figurinista e designer que viveu intensamente o período. Stepanova redigiu, com seu companheiro Aleksandr Rodtchenko, o Programa do primeiro grupo de trabalho dos construtivistas  e, juntamente com os demais artistas ligados ao grupo, encarnou os ideais da vanguarda artística revolucionária que compreendia sua atividade criadora como uma intervenção concreta na sociedade, e o “objeto artístico” um modelo a ser compreendido e não “obra de arte” a ser contemplada.


+


.


Stepanova fotografada no ateliê por A. Rodtchenko + com Rodtchenko em foto de 1920 + reunião do grupo construtivista + cenário e figurinos para o espetáculo teatral "The Death of Tarelkin", de V. E. Meyerhold; 1922 + trabalhando em uma estampa para tecido, em foto de Rodtchenko, 1924.



elegia construtiva para varvara stepanova

cabeça
compasso
mão

pensamento
ferramenta
ação

desenhodesígnio

mundo
homem
construção

tudo ligado
ao todo

arte
arte
arte
em toda parte
até deixar de ser
[p]arte


[ R.M. ]

quinta-feira, 25 de junho de 2009

vão

Anne Arden McDonald; s/título; fotografia
.



a mim
me basta um porto
inseguro
um ponto no escuro
um vão
em teus braços





[R.M. ]

.

Agradeço à poetamiga Betina Moraes a captura afetiva e a publicação, que muito me honra, no seu Redoma http://redoma.weebly.com/redoma-masculina.html

+ Betina Moraes
http://betinamoraes.blogspot.com/

que nada

Jean Cocteau; "Astrologie"

me descubro
dois

:

o que nada

sabe

o que mergulha

nada
sabe

.

no fundo
somos
nós

apenas

soma
e
sós



[ R.M. ]

quarta-feira, 24 de junho de 2009

por um fio

grafite s/ papel; s/d [R.M.]

domingo, 14 de junho de 2009

noturno outra vez

R.M.; matisse n.o 2; fotografia digital; 2007

.

quanto tempo perdido

penso

e penso no que é pensar nisso
tão tarde da noite
da vida

amores irreconhecíveis
irreconhecidos

coisas assim acontecem

dizem

o tempo é sóbrio em acertos
somos traços, não flechas

então seguimos

.

[ R.M. ]


sábado, 9 de maio de 2009

A Descoberta do Fogo seguido de A Expulsão do Paraíso

É preciso viver muito, deixar-se trabalhar todo, tudo ensaio. Até chegar o dia - e esse dia também passa -, até chegar o dia em que se chega àquela condição mais humana que se almeja tão pouco ter: aquela condição em que o espanto é o entendimento, e o entendimento é espanto.
[ R.M. ]




Mira Schendel; sem título, 1966; Ecoline e bastão de cera sobre papel.

+

Mira Shendel:
.

domingo, 3 de maio de 2009

manifesto


do
poema
sabe-se o sabor
quando
[no]
poema
ser
ao som se
soma





[ R. M. ]

imagens: série "concreto"; fotografia digital, 2007


.

Samson Flexor, um poema

Samson Flexor; "Bípede com Elementos Geométricos";
aquarela, 1970
.

para guardar as recordações dos devaneios fugazes
recordações
que não se dizem
que não se ouvem
que não se tocam
mas
que são presenças visíveis
nas aguadas coloridas
nas cores aguadas nas opacidades
e nas transparências
no papel enobrecido
e promovido à luz
assim nasceu o universo silencioso de minhas aquarelas
hoje
não é mais um meio
mas uma
finalidade em si
não são mais recordações
mas sim uma realidade
um ser
o milagre de andar na superfície das águas sem afundar


Samson Flexor
[1907-1971]

texto extraído da exposição "Samson Flexor - aquarelas e desenhos"
Instituto Moreira Salles - Gávea - Rio/RJ
Sobre o artista:

quinta-feira, 30 de abril de 2009

horas são


a cada dia
do pão a alegria
seja semente

da alma seja
sacerdote e guia
de toda gente


[ R.M. ]
.
"estela"; R.M., xilogravura; s/d
.

Clarice

quarta-feira, 29 de abril de 2009

iluminuras

"veermer"; fotografia da série "a vila"; R.M., Londrina, 1997

.
quero um dia
inteiro assim
atravessado de luz
à existência simples
de pequenas coisas

.


[R.M.]

Anamnemosine

Procurava lembrar. Como o que sobrevinha não lhe satisfazia, terminava sempre por regredir ao atual incômodo, ao horizontal desconforto. Buscava, na verdade, uma forma qualquer de utilidade. Não que o ambicionasse mas, gostaria, sim, de entender o quê. Algo havia lhe tornado, era evidente. Disso, com certeza, teria certeza se pudesse lembrar. Lembrava, isso sim, do muito que já lhe haviam dito, mas todas aquelas palavras agora já não eram mais aquelas, eram essas, e haviam se tornado tão estáveis quanto animais empalhados acomodados em prateleiras. Isso, essa sensação, era do tipo que possuía justamente o efeito de fazê-lo desacreditar inutilmente de tudo, em toda essa fiada de fatos críveis, tecidos por palavras mornas embaladas em melodias de ninar. Ora, não era mais criança. Não era mais, não era. Uma utilidade para tudo isso, pensava que pudesse. Gostaria, sim, de entender; mas permanecia, entretanto. Poderia seguir. Imaginar um talvez.
[R.M.]

Infância

Tudo o que se podia possuir era a linha do horizonte. Com os olhos, tudo era possível – enquanto pés, mãos, músculos permaneciam em si mesmos. Só, o olhar solidarizava-se com o espaço em volta, largo, vazio, ele mesmo em si nada e por isso mesmo recebendo o olhar como uma oração. Os dias estendiam-se então. Secos, os dias.
[R.M.]
.

"Infância"; R.M.; xilogravura, 1997

.

de onde vêm as palavras?

.

As palavras vêm da varinha mágica que é a língua.
As palavras vêm da sopa.
As palavras vêm dos sons que ouvimos quando estamos com os nossos amigos.
Há palavras quentinhas, acabadinhas de sair do forno.
Se a caneta não escrever, as palavras saem pelas mãos.
As palavras vêm da lua de Inverno.
As palavras são muito tímidas e quando querem sair de casa, vão pela chaminé.
As palavras vêm do coração.
As palavras vêm da palavra “palavra”.
As palavras vêm do fogo, quando o acendemos, as palavras queimam-se e saem, iluminadas.
É da imaginação que vêm as melhores palavras.
Se fosse uma prenda com palavras más, eu não a abria.
As palavras vêm de Homero porque os poetas têm muita sabedoria.
As palavras vêm nas nuvens brancas.
Quando dizemos a palavra errada ela desaparece.


Ana, Ana Rita, João L., João R., Carina, Adriana, Pedro, Alexandre, Inês

.


.



"Crianças"; Raul Motta; xilogravura, 1997


.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

um dia



se eu sei do tempo eu sei porque
um dia
meus pés pisaram a areia
sabendo que a areia já foi rocha
um dia

e dia após dia
o tempo da pedra era o mar
o mar que lambia
a pedra que dormia

[o sal do mar
a língua grossa de sal do mar
qual profecia]

.

[R.M.]

terça-feira, 17 de março de 2009

haiga

.
haicai e foto: R.M.
concepção visual da amiga Clarice Villac

uns e outros haicais


Se a memória não falha, comecei a escrever uns quase haicais no início da década de 1980. Já me atraía o cinema [Ozu, Mizoguchi, Kurosawa] e as artes orientais [caligrafia, ukyo-e], mas nada sabia da literatura clássica japonesa até ler, quase simultaneamente [sincronicamente?] três livros fundamentais: a biografia de Matsuo Bashô por Paulo Leminski [Bashô – A Lágrima do Peixe; Editora Brasiliense; col. Encanto Radical, 1983] e duas traduções da poeta Olga Savary: o Livro dos Hai Kais, seleção de poemas de três dos maiores representantes da arte do haicai clássico japonês, Bashô, Buson e Issa [Aliança Cultural Brasil-Japão/Massao Ohno Editores; São Paulo, 1987] e Sendas de Ôku, um dos cinco diários de viagem de Bashô [Roswitha Kempf Editores; 1986].

Nestes inícios, não tinha a preocupação de respeitar a tradição da divisão do poema em versos de 5, 7 e 5 sílabas, mas procurava escrever a partir de experiências vivenciadas, o que contemplava duas outras regras clássicas: referir-se a um evento particular e apresentar tal evento como “acontecendo agora”, e não no passado. Mais recentemente me propus a escrever respeitando a metrificação clássica e, acredito, este exercício tem resultado em poemas que julgo mais consistentes. Estes últimos estão aqui publicados a seguir, intitulados uns; os mais antigos são os outros.

Para os leitores que tiverem curiosidade em saber mais sobre os haicais, indico duas fontes na internet:

Caqui – Revista Brasileira de Haicai
http://www.kakinet.com/



.



Julius Bissier; aquarela; "2. Okt. 58"

.

uns



A vida sopra,
suave, um segredo:
brisa que passa.


.


Terra redonda
ainda que parados
eterna ronda.


.

Logo ali, o mar.
Vai seguindo o rio:
fluiracabar.

.


A alma - lama

nas águas de janeiro

me lavo - leve.



.


Da chuva que cai
quero apenas
uma única gota.


.


Meu coração
encontra o amor:
incêndio azul.


.



desenho: Mônica Sartori; "Sinuosidades" [ * ]



.

outros

.



Cadeiras de plástico:

na de madeira, solitária,

o gato.


.

Rugas que contam histórias -

quanta beleza no teu rosto,

mulher!

.



Quarto vazio:

minha companhia

lhe agrada?

.



É apenas uma mulher

mas já não vejo

floresárvores.


.



Vestida de azul

ela cruza as pernas e abre um livro.

[A beleza é uma coisa simples]


.



Nem o sol do meio-dia

desfaz a névoa

do meu coração!


.



Branca borboleta

me aponta o vermelho

em meio o verde.


.


Presente dado

a quem está ausente:

dela me lembro.


.


Uma árvore... e ninguém por perto!

Por quê não?

Infância perdida...

.



À beira do riacho

penso mergulhar em sua corrente

minha memória pesada.


.


Triste a cabeça

repleta de pensamentos:

peneira fina.

.



A luz

se acende

depois do happy end.


.



No topo da montanha,

a surpresa:

ainda falta para o céu!



.



O buda

sob a lâmpada:

duplamente iluminado.


.



noitevaranda

enquanto estrelas

mimetizam pirilampos.



.



Teu silêncio -

morno - e o mar

em torno.


.



[R.M.]

[ * ] Mônica Sartori é representada pela Galeria Anna Maria Niemeyer

http://www.annamarianiemeyer.com.br/



.





"one word, one buddha"


"One word, one Buddha"; Shakyô [*] of the Lotus Sutra.


.


The five virtues of shakyô are:

.


"Venerating the letters with your eyes

Keeping the letters in your heart

Chanting the letters with your mouth

Writing the letters with your hands

Becoming one with Buddha"


.


[ * ] Shakyô:

prática devocional que consistia em copiar os Sûtras [textos canônicos do budismo].


.


Imagem e texto extraídos de:

STEVENS, John. Sacred Calligraph of the East. Shambhala: London, 1981


.

poemas distantes


Elegia



I


A distância,
amiga, não é doce
como o vinho...

Sorvo agora,
em um rubro cálice,
saudades tuas

e em teu corpo
penso. E o perfume,
inebriante

alma das horas,
alento dos convivas,
a mim me toca

como ausência
dolorosa e triste,
de luz vazia...

Amada, teu bem
ainda não é o meu.
O coração da vida

não se alcança
apenas em palavras...
Inda que belas,

são como o gelo:
formas limpas, perfeitas,
a querer d’água

a fluidez, o
fluxo – e o destino:
se perder no mar...

Assim, desejo
a sublime ventura:
ao amar, ir – e

no Amor, chegar;
em teus braços saber
o que é nadar...




II


Mas, ainda aqui,
nada sei do teu corpo
senão miragens ...

E, só, caminho
por vales, planícies
desertas e vãs,

enquanto sobram
as horas e os dias
desalentam-se,

entorpecendo –
me como o vinho, já por
demais sorvido

em tosco rito -
pálido arremedo
a Dioniso.

A taça, leve,
e a garrafa, oca,
são oferendas

mínimas – e o
deus exige além:
enovelar-se,

extenuado,
preenchendo o vazio
entre corpos nus,

abeberar-se
da seiva acridoce
dos sexos, quente

como o sangue nos
corações... E, só então,
consagrar os dois

amantes, dourar
seus corpos e untar
suas almas sãs.



III



Amiga: tua
distância, agora,
é aura onde

faço cálida
morada. Entre tantas
és a única

por que anseio:
por teu nome eu peço,
por teu hálito,

aqueço; sendo
um, enlouqueço; dois,
me reconheço...

Ah! Se pudesse,
agora, sentir de ti
o sumo prazer,

o inefável
toque que imagino,
apenas! Tremo,

e o frêmito
que me corre inteiro
é sombra frente

ao real sentir,
ao túrgido turbilhão!
Mas, espero - e

a alma é mar,
sopra o vento, vago...
E trago em mim,

por sob a pele,
o brilho das estrelas
frias, distantes...

- Enquanto guardo
o mergulho profundo
que ensaio, só.







Chama



as
asas
voam
e
são
tantas
as flechas
as flamas
os nomes
do
amor
que
a cada vôo
se me jogo inteiro
e me perco em tudo que me cerca
sinto que o mais em mim não me sustenta
(que sou muito mais que meu coração agüenta)
e volto ao solo, ao chão, ao colo de um deus desequilibrado e trôpego...







soma

z o n a e s cu r a

d a c o n s c i ê n c i a

z o n a l u z

z o n a p ó s

d e t u d o u m p o u c o

e u m i x a d o a o t o d o

r e v e r e n c i o

o c o r p o

a t r a m a

a s o m a

o c o i t o














Extático balé

Qual serpente
dulcíssima e negra
[que à luz do dia se recolhe em corpo]
do teu ventre
parte o movimento
linha súbita
espiralada e crescente
pura grafia
alfabeto constelar transcrito em gestos a desvelar aparências:
a matéria se quer última semente
ponte sutil
entre tantos mundos existentes.



.



[R.M.]

concreto

.
se
somos
SÓIS
sabemos
sendo
SÓS
.
[R.M.]

terça-feira, 3 de março de 2009

tempo[s]

o tempo
urge
e trama

o tempo
traça
e troça

o tempo
clama
e cama

o tempo
é templo
e chama




[ o tempo

em nada pousa

o tempo

pesa

ou

repousa ]


.



[R.M.]

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

o catavento de fulô

Como tudo que é bom o catavento de fulô nasceu de um encontro. E não foi encontro de esquina, foi-bom-não-foi, mas desses do tipo que pegam assim de jeito e transformam o sujeito.
Encontro de gente com gente, gente com flor, flor com gente, gente-flor.
Objeto concreto, o catavento também é não-objeto. O catavento não é um, não é único, não é qualquer um. O catavento é nenhúnico.
Catavento vive de brisa? Do vento que venta de fora pra dentro, catavento nada guarda. Sábio catavento sabe que tudo que é vento um dia passa. Então, de tudo que venta, o catavento inventa e assim se reinventa. O catavento ultrapassa o vento que passa.
E quando o vento não passa? Oras, tudo que não passa, fica!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

poemas do catavento


.


[ primeiras palavras do catavento ]




vai voando
rapidinho passarinha
vôo livre
linhas soltas passarinha
vôo certo
tempo curto passarinha
que o dia é breve
pra tanto pouso passarinha


.


[ primeiros cataventos em palavras ]


catavento de fulô
gira quando sopra
o vento do meu amor



.

cata vento
cata sopro sentimento
cata vento
cata capta o momento
cata cada elemento
cata tudo quanto é vento
cata rápido cata lento
cata até pensamento
cata vento é moinho
cata vento é torvelinho
cata vento meu amorzinho
cata capta teu jeitinho
cata cata e desata
cata rio cata nuvem
cata pedra no caminho
cata dia e noite e dia
cata e gira com carinho

.


[ liú bliú! ]




normamor
norma mora
no meu coração

norma flor
flor aflora
flor de paixão

cor da flor
flor de amor
cor coração




.


palavra que lavra
perdura
meu sentir
suave
dentro de mim
à volta tua
ainda circula



.


Se somos um e dois
importa guardar o um
de cada um de nós.

Se somos um em dois
o dois em nós
é nosso bem comum.







.


Teu jardim


Teu jardim
meu amor
é lugar onde cultivo
o melhor de mim.
Teu jardim
minha cor
é mais que chão
solução
de sutil equação:
viver além de mim.
Teu jardim
minha flor
é onde me jogo
semente
querendo somente
ser teu
enfim

.




hoje é noite
é de festa junina

balão baião
paçoca quentão

queria comigo
moça londrina

balão baião
paçoca quentão

mas... ai, que frio!
ela pode vir não...

balão baião
paçoca quentão

hoje é noite
é de festa junina...


.





Moça-cor

A moça acorda
e vê e sente a cor do dia.
O dia tinge de cor a cor da moça
e ela toda
furtacor
de cor se finge:
cromacamaleoa
vive em si a cor oração
na coloração do dia.


.

passarinha poeta
palavra voa
vôo lento
quietinho
quentinho
voa adentro
fazendo ninho
aqui dentro
de mim



.


de dar dó
a saudade que sinto
dó de xodó
xodó de domingo



.


[ sentidos ]




Norma e a esfinge

de tudo que olhas
teu olhar sente e indaga
tateia
e tatua
o mundo
teu olhar
adaga negra e profunda
em tudo que pousa
estranha
se entranha
mergulha fundo
cheiro
sabor
cor
tato
em tudo teu olhar é ato
em tudo se faz presente de fato
teu olhar
sabe que não se sabe nada sobre
assim a tudo que tinge e toca
rasga
corta
perfura
sin jamás perder la ternura
teu negro olhar de menina
sabe e ensina
se tudo que é também se finge
nenhum saber é sábio
só o sabor vence a esfinge.



.




o fruto

a partir da tela
“Women with Mangoes”,
de Paul Gauguin


o fruto se sabe
simples lúcida verdade
o fruto é todo corpo
e carne e entranhas
o cheiro bruto a escarnecer de essências
o fruto é
(sim)
essencial
não se apraz em platônico enlace:
ao invés: abandona-se aos bocados
sobrevive no partir
e vai-se
em sacro ofício de si
submerge em sementes
na terra escura



.

tua
palavra
certa
tua
palavra
seta
tua
palavra
acerta
em cheio
o meio
de nós



.

[ 4 poeminhas pelo celular ]


nuvens são árvores
suspensas
em louca revoada

pedras são nuvens
cansadas
longe de casa

.

fim de tarde
luz indo
luzindo leve
tingindo
ares de domingo
no dia que se esvai

.

movimento
lento
respira
dentro

tempo
silêncio
em torno
denso

.

enquanto o dia
nasce
e segue
seu caminho
meu rio
leve
levado por lembranças
reflui:
guardo tua presença


.

Todos os poemas para
Norma O.

passarinha,
céu de melancia,
pérola rubi,
onomacentopéia,
lagartixa-macunaíma,
fio d'olhos d'água,
luz dos olhos negros,
dona moça,
vagas estrelas,
porta-bandeira...

.


R.M.


2007 - 2008

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