quarta-feira, 29 de abril de 2009

de onde vêm as palavras?

.

As palavras vêm da varinha mágica que é a língua.
As palavras vêm da sopa.
As palavras vêm dos sons que ouvimos quando estamos com os nossos amigos.
Há palavras quentinhas, acabadinhas de sair do forno.
Se a caneta não escrever, as palavras saem pelas mãos.
As palavras vêm da lua de Inverno.
As palavras são muito tímidas e quando querem sair de casa, vão pela chaminé.
As palavras vêm do coração.
As palavras vêm da palavra “palavra”.
As palavras vêm do fogo, quando o acendemos, as palavras queimam-se e saem, iluminadas.
É da imaginação que vêm as melhores palavras.
Se fosse uma prenda com palavras más, eu não a abria.
As palavras vêm de Homero porque os poetas têm muita sabedoria.
As palavras vêm nas nuvens brancas.
Quando dizemos a palavra errada ela desaparece.


Ana, Ana Rita, João L., João R., Carina, Adriana, Pedro, Alexandre, Inês

.


.



"Crianças"; Raul Motta; xilogravura, 1997


.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

um dia



se eu sei do tempo eu sei porque
um dia
meus pés pisaram a areia
sabendo que a areia já foi rocha
um dia

e dia após dia
o tempo da pedra era o mar
o mar que lambia
a pedra que dormia

[o sal do mar
a língua grossa de sal do mar
qual profecia]

.

[R.M.]

terça-feira, 17 de março de 2009

haiga

.
haicai e foto: R.M.
concepção visual da amiga Clarice Villac

uns e outros haicais


Se a memória não falha, comecei a escrever uns quase haicais no início da década de 1980. Já me atraía o cinema [Ozu, Mizoguchi, Kurosawa] e as artes orientais [caligrafia, ukyo-e], mas nada sabia da literatura clássica japonesa até ler, quase simultaneamente [sincronicamente?] três livros fundamentais: a biografia de Matsuo Bashô por Paulo Leminski [Bashô – A Lágrima do Peixe; Editora Brasiliense; col. Encanto Radical, 1983] e duas traduções da poeta Olga Savary: o Livro dos Hai Kais, seleção de poemas de três dos maiores representantes da arte do haicai clássico japonês, Bashô, Buson e Issa [Aliança Cultural Brasil-Japão/Massao Ohno Editores; São Paulo, 1987] e Sendas de Ôku, um dos cinco diários de viagem de Bashô [Roswitha Kempf Editores; 1986].

Nestes inícios, não tinha a preocupação de respeitar a tradição da divisão do poema em versos de 5, 7 e 5 sílabas, mas procurava escrever a partir de experiências vivenciadas, o que contemplava duas outras regras clássicas: referir-se a um evento particular e apresentar tal evento como “acontecendo agora”, e não no passado. Mais recentemente me propus a escrever respeitando a metrificação clássica e, acredito, este exercício tem resultado em poemas que julgo mais consistentes. Estes últimos estão aqui publicados a seguir, intitulados uns; os mais antigos são os outros.

Para os leitores que tiverem curiosidade em saber mais sobre os haicais, indico duas fontes na internet:

Caqui – Revista Brasileira de Haicai
http://www.kakinet.com/



.



Julius Bissier; aquarela; "2. Okt. 58"

.

uns



A vida sopra,
suave, um segredo:
brisa que passa.


.


Terra redonda
ainda que parados
eterna ronda.


.

Logo ali, o mar.
Vai seguindo o rio:
fluiracabar.

.


A alma - lama

nas águas de janeiro

me lavo - leve.



.


Da chuva que cai
quero apenas
uma única gota.


.


Meu coração
encontra o amor:
incêndio azul.


.



desenho: Mônica Sartori; "Sinuosidades" [ * ]



.

outros

.



Cadeiras de plástico:

na de madeira, solitária,

o gato.


.

Rugas que contam histórias -

quanta beleza no teu rosto,

mulher!

.



Quarto vazio:

minha companhia

lhe agrada?

.



É apenas uma mulher

mas já não vejo

floresárvores.


.



Vestida de azul

ela cruza as pernas e abre um livro.

[A beleza é uma coisa simples]


.



Nem o sol do meio-dia

desfaz a névoa

do meu coração!


.



Branca borboleta

me aponta o vermelho

em meio o verde.


.


Presente dado

a quem está ausente:

dela me lembro.


.


Uma árvore... e ninguém por perto!

Por quê não?

Infância perdida...

.



À beira do riacho

penso mergulhar em sua corrente

minha memória pesada.


.


Triste a cabeça

repleta de pensamentos:

peneira fina.

.



A luz

se acende

depois do happy end.


.



No topo da montanha,

a surpresa:

ainda falta para o céu!



.



O buda

sob a lâmpada:

duplamente iluminado.


.



noitevaranda

enquanto estrelas

mimetizam pirilampos.



.



Teu silêncio -

morno - e o mar

em torno.


.



[R.M.]

[ * ] Mônica Sartori é representada pela Galeria Anna Maria Niemeyer

http://www.annamarianiemeyer.com.br/



.





"one word, one buddha"


"One word, one Buddha"; Shakyô [*] of the Lotus Sutra.


.


The five virtues of shakyô are:

.


"Venerating the letters with your eyes

Keeping the letters in your heart

Chanting the letters with your mouth

Writing the letters with your hands

Becoming one with Buddha"


.


[ * ] Shakyô:

prática devocional que consistia em copiar os Sûtras [textos canônicos do budismo].


.


Imagem e texto extraídos de:

STEVENS, John. Sacred Calligraph of the East. Shambhala: London, 1981


.

poemas distantes


Elegia



I


A distância,
amiga, não é doce
como o vinho...

Sorvo agora,
em um rubro cálice,
saudades tuas

e em teu corpo
penso. E o perfume,
inebriante

alma das horas,
alento dos convivas,
a mim me toca

como ausência
dolorosa e triste,
de luz vazia...

Amada, teu bem
ainda não é o meu.
O coração da vida

não se alcança
apenas em palavras...
Inda que belas,

são como o gelo:
formas limpas, perfeitas,
a querer d’água

a fluidez, o
fluxo – e o destino:
se perder no mar...

Assim, desejo
a sublime ventura:
ao amar, ir – e

no Amor, chegar;
em teus braços saber
o que é nadar...




II


Mas, ainda aqui,
nada sei do teu corpo
senão miragens ...

E, só, caminho
por vales, planícies
desertas e vãs,

enquanto sobram
as horas e os dias
desalentam-se,

entorpecendo –
me como o vinho, já por
demais sorvido

em tosco rito -
pálido arremedo
a Dioniso.

A taça, leve,
e a garrafa, oca,
são oferendas

mínimas – e o
deus exige além:
enovelar-se,

extenuado,
preenchendo o vazio
entre corpos nus,

abeberar-se
da seiva acridoce
dos sexos, quente

como o sangue nos
corações... E, só então,
consagrar os dois

amantes, dourar
seus corpos e untar
suas almas sãs.



III



Amiga: tua
distância, agora,
é aura onde

faço cálida
morada. Entre tantas
és a única

por que anseio:
por teu nome eu peço,
por teu hálito,

aqueço; sendo
um, enlouqueço; dois,
me reconheço...

Ah! Se pudesse,
agora, sentir de ti
o sumo prazer,

o inefável
toque que imagino,
apenas! Tremo,

e o frêmito
que me corre inteiro
é sombra frente

ao real sentir,
ao túrgido turbilhão!
Mas, espero - e

a alma é mar,
sopra o vento, vago...
E trago em mim,

por sob a pele,
o brilho das estrelas
frias, distantes...

- Enquanto guardo
o mergulho profundo
que ensaio, só.







Chama



as
asas
voam
e
são
tantas
as flechas
as flamas
os nomes
do
amor
que
a cada vôo
se me jogo inteiro
e me perco em tudo que me cerca
sinto que o mais em mim não me sustenta
(que sou muito mais que meu coração agüenta)
e volto ao solo, ao chão, ao colo de um deus desequilibrado e trôpego...







soma

z o n a e s cu r a

d a c o n s c i ê n c i a

z o n a l u z

z o n a p ó s

d e t u d o u m p o u c o

e u m i x a d o a o t o d o

r e v e r e n c i o

o c o r p o

a t r a m a

a s o m a

o c o i t o














Extático balé

Qual serpente
dulcíssima e negra
[que à luz do dia se recolhe em corpo]
do teu ventre
parte o movimento
linha súbita
espiralada e crescente
pura grafia
alfabeto constelar transcrito em gestos a desvelar aparências:
a matéria se quer última semente
ponte sutil
entre tantos mundos existentes.



.



[R.M.]

concreto

.
se
somos
SÓIS
sabemos
sendo
SÓS
.
[R.M.]

terça-feira, 3 de março de 2009

tempo[s]

o tempo
urge
e trama

o tempo
traça
e troça

o tempo
clama
e cama

o tempo
é templo
e chama




[ o tempo

em nada pousa

o tempo

pesa

ou

repousa ]


.



[R.M.]

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

o catavento de fulô

Como tudo que é bom o catavento de fulô nasceu de um encontro. E não foi encontro de esquina, foi-bom-não-foi, mas desses do tipo que pegam assim de jeito e transformam o sujeito.
Encontro de gente com gente, gente com flor, flor com gente, gente-flor.
Objeto concreto, o catavento também é não-objeto. O catavento não é um, não é único, não é qualquer um. O catavento é nenhúnico.
Catavento vive de brisa? Do vento que venta de fora pra dentro, catavento nada guarda. Sábio catavento sabe que tudo que é vento um dia passa. Então, de tudo que venta, o catavento inventa e assim se reinventa. O catavento ultrapassa o vento que passa.
E quando o vento não passa? Oras, tudo que não passa, fica!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

poemas do catavento


.


[ primeiras palavras do catavento ]




vai voando
rapidinho passarinha
vôo livre
linhas soltas passarinha
vôo certo
tempo curto passarinha
que o dia é breve
pra tanto pouso passarinha


.


[ primeiros cataventos em palavras ]


catavento de fulô
gira quando sopra
o vento do meu amor



.

cata vento
cata sopro sentimento
cata vento
cata capta o momento
cata cada elemento
cata tudo quanto é vento
cata rápido cata lento
cata até pensamento
cata vento é moinho
cata vento é torvelinho
cata vento meu amorzinho
cata capta teu jeitinho
cata cata e desata
cata rio cata nuvem
cata pedra no caminho
cata dia e noite e dia
cata e gira com carinho

.


[ liú bliú! ]




normamor
norma mora
no meu coração

norma flor
flor aflora
flor de paixão

cor da flor
flor de amor
cor coração




.


palavra que lavra
perdura
meu sentir
suave
dentro de mim
à volta tua
ainda circula



.


Se somos um e dois
importa guardar o um
de cada um de nós.

Se somos um em dois
o dois em nós
é nosso bem comum.







.


Teu jardim


Teu jardim
meu amor
é lugar onde cultivo
o melhor de mim.
Teu jardim
minha cor
é mais que chão
solução
de sutil equação:
viver além de mim.
Teu jardim
minha flor
é onde me jogo
semente
querendo somente
ser teu
enfim

.




hoje é noite
é de festa junina

balão baião
paçoca quentão

queria comigo
moça londrina

balão baião
paçoca quentão

mas... ai, que frio!
ela pode vir não...

balão baião
paçoca quentão

hoje é noite
é de festa junina...


.





Moça-cor

A moça acorda
e vê e sente a cor do dia.
O dia tinge de cor a cor da moça
e ela toda
furtacor
de cor se finge:
cromacamaleoa
vive em si a cor oração
na coloração do dia.


.

passarinha poeta
palavra voa
vôo lento
quietinho
quentinho
voa adentro
fazendo ninho
aqui dentro
de mim



.


de dar dó
a saudade que sinto
dó de xodó
xodó de domingo



.


[ sentidos ]




Norma e a esfinge

de tudo que olhas
teu olhar sente e indaga
tateia
e tatua
o mundo
teu olhar
adaga negra e profunda
em tudo que pousa
estranha
se entranha
mergulha fundo
cheiro
sabor
cor
tato
em tudo teu olhar é ato
em tudo se faz presente de fato
teu olhar
sabe que não se sabe nada sobre
assim a tudo que tinge e toca
rasga
corta
perfura
sin jamás perder la ternura
teu negro olhar de menina
sabe e ensina
se tudo que é também se finge
nenhum saber é sábio
só o sabor vence a esfinge.



.




o fruto

a partir da tela
“Women with Mangoes”,
de Paul Gauguin


o fruto se sabe
simples lúcida verdade
o fruto é todo corpo
e carne e entranhas
o cheiro bruto a escarnecer de essências
o fruto é
(sim)
essencial
não se apraz em platônico enlace:
ao invés: abandona-se aos bocados
sobrevive no partir
e vai-se
em sacro ofício de si
submerge em sementes
na terra escura



.

tua
palavra
certa
tua
palavra
seta
tua
palavra
acerta
em cheio
o meio
de nós



.

[ 4 poeminhas pelo celular ]


nuvens são árvores
suspensas
em louca revoada

pedras são nuvens
cansadas
longe de casa

.

fim de tarde
luz indo
luzindo leve
tingindo
ares de domingo
no dia que se esvai

.

movimento
lento
respira
dentro

tempo
silêncio
em torno
denso

.

enquanto o dia
nasce
e segue
seu caminho
meu rio
leve
levado por lembranças
reflui:
guardo tua presença


.

Todos os poemas para
Norma O.

passarinha,
céu de melancia,
pérola rubi,
onomacentopéia,
lagartixa-macunaíma,
fio d'olhos d'água,
luz dos olhos negros,
dona moça,
vagas estrelas,
porta-bandeira...

.


R.M.


2007 - 2008

.